Estamos vivendo em um contexto de pandemia jamais esperado. Com a chegada do novo Coronavírus em todos os continentes do mundo, as situações vivenciadas, praticamente, por todos/as habitantes do Planeta, além do processo de adoecimento e morte, têm-nos deparado com outros fenômenos, os quais aparecem como desafios a serem superados. O aumento dos registros de casos de violência doméstica, que vitimiza mulheres, crianças/adolescentes, idosos e pessoas com deficiências é um desses acontecimentos que nos preocupa.
Importante registrar que a violência doméstica, de uma maneira geral, pode ser definida pela literatura especializada (AZEVEDO e GUERRA, 1997; AZEVEDO, 2002; BRASIL, 2001)¹ como toda ação ou omissão que prejudique a integridade física e/ou psicológica de um ou mais membros da família, perpetrado fora ou dentro de casa por qualquer integrante também da família, numa marcada relação de poder, construída a partir de hierarquização social tão comum ao modelo se sociedade ocidental capitalista.
De acordo com a ONU Mulheres e Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (2020)² houve o aumento de 17% no registro de denúncias de violência doméstica no Brasil. Nesse dado não estão explícitos os detalhes do tipo de violência e que parcela da sociedade ela é dirigida, mas entende-se que preferencialmente as mulheres são apresentadas como as vítimas nessas denúncias. As crianças, adolescentes, idosos ou as pessoas com deficiência também são vítimas de violência doméstica, mas estão numa espécie de sub notificação ou podendo ser consideradas vítimas indiretas. Tal dado é extremamente grave e preocupante, uma vez que a exposição das pessoas mais vulneráveis à violência trazem consequências nefastas às vítimas de forma direta e cruel, assim como a toda a sociedade. Vê-se nessa realidade o aniquilamento do sujeito, pois lhe é negado os seus Direitos, sobre o que há de mais essencial como determina nossa Carta Magna no 5º artigo determinando pelo inciso III que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante³. Contudo, os dados apresentados pelo site oficial do governo mostram que em 2019, de cada 10 vítimas de feminicídio, 7 foram mortas em seus lares. Segundo a BBC4 Brasil, em vários países o número de denúncias registradas só aumentou, sendo que para a ONU, em países em desenvolvimento haverá menos oportunidades para denúncias. Infelizmente, observamos aqui no Brasil essa perversa realidade, acrescendo ainda que também haverá menos oportunidades de atendimento e serviços às vítimas, sejam elas as mulheres, filhos/as, idosos/as ou pessoas com deficiências que vivem em lares violentos, caso os governos não tomem as medidas necessárias.
A violência doméstica não é um fenômeno que tem sua origem num contexto de quarentena, criada por causa de uma pandemia biológica. De acordo a advogada criminalista Valdilene Oliveira Martins5, do estado de Sergipe, esse tipo violência poderia ser comparada a própria pandemia, pois trata-se de é um fenômeno vivido histórica e culturalmente por todos os povos do mundo. Intelectuais/pesquisadores, organismos internacionais de Direitos Humanos, governos, assim como sociedade civil organizada vem se debruçando para compreendê-la melhor a fim de encontrar mecanismos que sejam eficientes para a sua erradicação. Há muitas explicações e dados decorrentes das pesquisas realizadas, o que se configura como uma nova problemática é o aumento da vivência de atos violentos, a medida em que as vítimas estão tendo que conviver com seus agressores maior tempo dentro de casa em função da necessidade de se controlar a transmissão do vírus. Há, portanto, o acirramento da violência que já existia antes do isolamento social. Day et al (2003)6 já afirmavam que o isolamento social se configura como um fator de potencialização para o processo de vitimização, uma vez que promove-se limites de formação de redes de apoio e proteção às vítimas de violência, ficando mais expostas ao controle e agressividade de agressores.
Nesse sentido, os governos devem adotar medidas urgentes e eficazes para garantir a integridade física e psicológica dessas vítimas, resguardando, por sua obrigação, os direitos humanos. Pois, assim como é dever do Estado proteger a população da pandemia de COVID-19, é dever do mesmo assegurar a integridade física e psicológica das suas/seus cidadãs/ãos, principalmente durante o período de quarentena.
Vivemos uma crise política e econômica sem precedentes, já portadora de consequências devastadoras no que diz respeito a retirada de direitos e políticas públicas anteriormente consolidadas, especialmente as que atendem às populações mais vulneráveis, as quais também são as maiores vítimas da violência doméstica. É preciso destacar que os marcadores de raça, classe e gênero sejam levados em consideração pelos governos locais para criação de serviços de proteção à vítima em tempos de pandemia, uma vez que as ações contrárias a manutenção da vida provindas do líder máximo do país têm nos apontado horizontes obscuros que nos dão outros direcionamentos possíveis.
De acordo com o Instituto Geledés7, a situação socioeconômica de mulheres negras é muito mais precarizada, uma vez que estas mulheres ocupam mais empregos informais ou trabalham como domésticas. Com a chegada da pandemia essas mulheres são as primeiras a perderem seus sustentos, o que as coloca em total submissão aos agressores, em isolamento nas suas casas. Portanto, essa é uma dura realidade a qual promove uma estatística cruel, de desigualdade em todos os níveis. Diante disso, é imprescindível que auxílios emergenciais cheguem mais urgentemente a essas mulheres.
E ainda, a ausência de uma rede de apoio eficaz é fator de risco que coaduna com a prevalência de casos em números crescentes de violência física, psicológica, sexual, negligência, patrimonial ou até de mortes. Faz-se necessário, dessa forma, criar serviços alternativos seja pela atuação estratégica da força policial, seja pela criação de canais remotos ou não de serviços essenciais às vítimas, que vão da denúncia aos atendimentos especializados de saúde, assistência social e jurídica. Esse é um chamado aos poderes públicos estadual/municipais e à sociedade representada aqui pela classe de profissionais da psicologia em defesa da vida livre da violência doméstica.
Reiteramos nessa nota a responsabilidade da/o psicóloga/o sobre a necessidade de analisar crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural como prescrito nos Princípios Fundamentais do nosso Código de Ética Profissional8, atendendo também, especialmente no atendimento às vítimas de violência.
Seguem dispositivos importantes para mulheres em busca de acesso a serviços e direitos:
– Ligue 180 (violência contra mulher)
– Ligue 192 (urgências médicas)
– Ligue 190 (polícia)
– Ligue 100 (violência contra crianças e adolescentes)
– App Direitos Humanos Brasil
– Ligue Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (CRAS, CREAS, CRAMSV) da sua cidade ou bairro.
– CDDM/AL (ong em Maceió): https://www.instagram.com/cddm_al/
– Associação AME (Associação Beneficente em Maceió): https://www.instagram.com/associacaoame/
Referências:
- AZEVEDO, M.A. e GUERRA,V.N. (orgs.). Infância e Violência Doméstica: fronteiras do conhecimento. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1997.
AZEVEDO, M.A. Violência doméstica contra a criança e o adolescente. Recife: EDUPE, 2002.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviço / Secretaria de Políticas de Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2001.
2.http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/ONU-MULHERES-COVID19_LAC.pdf
- BRASIL. Constituição Federal do Brasil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47365503
- Live realizada na página de Instagram pessoal da advogada criminalista Valdilene Martins no dia 06 de abril de 2020.
6. DAY, Vivian Peres et.al. Violência Doméstica e suas diferentes manifestações. In: http://www.scielo.br/pdf/rprs/v25s1/a03v25s1.pdf