Uma tradução livre do alemão de uma carta de Sigmund Freud endereçada a Wilhelm Fließ: ou as questões sobre as bruxas e os neuróticos

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Yvisson Gomes dos Santos[1]

RESUMO: a presente carta de Freud destinada a seu amigo Fließ é considerada uma escritura capital do pai da psicanálise em relacionar os sintomas neuróticos com as crendices populares na busca de se compreender as relações do sinto(mal) com a cultura do sujeito moderno. Vale salientar que a tradução da presente Carta de Freud foi-me possível devido às aulas de Alemão Instrumental I e II que cursei no curso de filosofia da UFAL, tendo como professora destas duas disciplinas eletivas Irene Maria Dietschi (FALE/UFAL).

PALAVRAS-CHAVE: Carta, Freud, Cultura.

Para Freud não era interessante e nem adequado limitar o estudo das histerias ou de outras neuroses pelo viés organicista. A ideia do vienense foi de despertar em seu leitor as relações do mito, da literatura, do folclore, da sociologia, da filosofia, dentre outros, com as investigações psicanalíticas que pudessem apresentar-se, nem que sejam metaforicamente, com o sintoma.

Os sintomas neurótico, psicótico e perverso tinham caminhos distintos na constituição do sujeito. Ser neurótico era aceitar a barreia da castração, já ao psicótico seria a forclusão e ao perverso, burlar, ludibriar e denegar a metáfora paterna. Esses vieses distintos devem ser considerados na arquitetura freudiana como elementos axiais ao que se convencionou chamar de epistemologia psicanalítica.

Os primeiros escritos de Freud foram organizados principalmente, aqui no Brasil, pela Editora Imago. Optamos por traduzir Briefean Wilhelm Fließ diretamente do alemão para nossa língua vernácula.Além da tradução da Imago (português), temos da Amorrortu Editores (espanhol). Boas traduções, mas que, ao nosso entender, necessita-se de uma maior ênfase à simplicidade e, ao mesmo tempo, à cumplicidade de Freud com seu discípulo e amigo testamentada em escritura. Advertimos que não há pretensões outras nesse empreendimento, mas apenas a necessidade de um novo olhar sobre o referido documento.

Considera-se que toda tradução implica um comprometimento do tradutor, ora ele pode fazer-se traidor do texto, ora ele pode dar uma leitura hermenêutica através sua formação cultural e estilística. Essa última opção me dispus a fazer.

Escolhemos, na presente tradução, pelo estilo informal do texto de Freud (já que se tratava de uma carta ao seu amigo pessoal) pelos meus vieses estilísticos.

Sabemos que a palavra estilo do latim stilum que pode se desdobrar metonimicamente na palavra estilete; e é nesse sentido que o estilo corta, perfura, risca certo tecido de palavras e discursos que perfazem uma colcha de retalhos linguísticos (o estilo é de Freud, e tentamos a contento fazer permanecer e aclarar o estilo do pai da psicanálise).

É de nota que o presente texto de Freud algumas vezes se apresenta em forma de rabiscos, seguido por reticências, mas que forma um apanhado das inquietações de Freud à época oitocentista. Preferimos deixar a carta tal como ela se apresentava, a saber, de uma forma coloquial e sem figuras de linguagens inapropriadas, ou seja, um escrito que saboreia o estilo freudiano de escrever em suas incursões sobre os sintomas e patologias inerentes ao século XIX (aprioristicamente).

TRADUÇÃO DO ALEMÃO

A Carta […] [2]

 […] A ideia de trazer as bruxas na história ganha vida. E por outra parte a considero bem sucedida. Os detalhes começam a se proliferarem. O “voar” está esclarecido, a vassoura sobre a qual elas cavalgam é provavelmente o grande Senhor Pênis. Nos encontros das reuniões secretas, com dança e divertimentos, pode-se observar isto todos os dias nas ruas onde crianças brincam. Certo dia li que o ouro que o diabo oferta as suas vítimas geralmente se transformam em fezes; num certo dia, o Senhor E, me disse de maneira repentina sobre os delírios de dinheiro de sua [antiga] babá (e por um desvio Cagliostro-orifício-merda) que o dinheiro de Louise era sempre fezes. Destarte, nas histórias de bruxas o dinheiro volta a transforma-se na substância na qual ele foi gerado. Ah, se soubesse porque o esperma do diabo sempre é qualificado como “frio” nas confissões das bruxas! Encomendei o Martelo das Feiticeiras(Malleusmaleficarum), e agora que dei o último curso sobre as paralisias das crianças, estudá-lo-ei com afinco. A história do diabo, o léxico popular dos palavreados de insultos nas canções infantis sobre o malfazejo, tudo isto tem me interessado em particular. Você poderia me indicar sem esforço, através de sua admirável memória, alguma boa bibliografia sobre o referido assunto? Sobre as danças e as confissões das bruxas, recordo-lhe sobre as epidemias das danças das feiticeiras na Idade Média. A Louise do Senhor E. era uma dessas bruxas que dançavam, e ele costumeiramente se recorda dela quando assiste a um balé, seguindo-lhe de angústia ao ver uma peça de teatro.

O voar, o flutuar, correspondem aos expedientes acrobáticos nos ataques histéricos dos meninos etc.

Se me permite uma opinião: nas perversões, cujo negativo é a histeria, podemos pensar que houve em certo momento uma relação de um culto sexual que possivelmente se tornou religião no oriente semítico (Moloch, Astarte). […]

As ações perversas são, além disso, sempre as mesmas, e providas de sentido e construídas segundo algum paradigma que será preciso apreender.

Desta feita, imagino uma religião do diabo, na antiguidade primordial, cujos ritos se estenderam em segredo, e assim eu concebo severo tratamento dos juízes às bruxas. E as investigações se proliferam.

Outro tópico da corrente principal que defendo deriva-seda seguinte consideração: existe uma classe de pessoas que nos dias atuais narram histórias análogas de bruxas, também os pacientes contam tais histórias, mas não encontram respaldo nos outros que não creem nas mesmas, mas, mesmo assim, a crença sobre tal tema permanece inabalável. Me refiro, como você deve ter imaginado, ao paranoico, que em suas queixas delirantes relacionam comida com merda, e dizem que foram maltratados a noite de maneira desprezível e sexual, no qual tudo isto faz parte de seu conteúdo mnemônico, etc. Você sabe que tenho distinguido o delírio de recordação do delírio de interpretação. Este último está vinculado ao recurso impreciso em relação aos criminosos, que por sinal estão abrigados pela defesa.

Ainda um detalhe: na histeria, tem-se o pai com uma elevada demanda de amor pelos seus filhos, ocorrendo, algumas vezes de forma contrária,um sentimento de humilhação perante o amado (pai), ocasionado uma impotência por não poder se casar devido a um ideal insatisfeito. Explico:a grandiosidade do pai inclina-se de forma condescendente a criança, algumas vezes retraindo-a. Compare esta combinação: paranoia, delírios de grandeza e a dúvida fantasiosa com relação se a criança é verdadeiramente filha de seu pai. É o reverso da medalha.

Tudo isto, ainda assim, torna-se incerto a sustentar tal conjectura, ou seja, que a escolha da neurose estaria condicionada pelo seu tempo de origem (gênese), mas ao invés disso parece ter se fixado na primeira infância. Mas essa definição é sempre oscilante entre o momento do nascimento e o tempo da repressão (sendo este último, o meu preferencial).

Considerações Finais

A escritura freudiana nesta carta estava em gérmen. Não à toa que ela faz parte também dos escritos pré-psicanalíticos do autor.

O que versa a Carta é a relação que Freud inquire sobre o imaginário popular das bruxas e dos neuróticos. As danças, a vassoura onde as feiticeiras voavam, os sortilégios e divertimentos têm, segundo o psicanalista, relação com as brincadeiras infantis. Os elementos físicos que as bruxas ofereciam aos incautos, como o ouro, poderiam ser ligados metonimicamente as fezes, e assim por diante. Freud nesta Carta demonstra o interesse sobre o estudo das feiticeiras, e pede a seu discípulo e amigo material bibliográfico para estudar mais detalhadamente tal assunto.

É de nota que tal Carta parte de uma inquietação de Freud sobre este universo folclórico nascido do medievo, e que nos dá pistas, mesmo que neófitas, de que os sintomas neuróticos e paranoicos têm correspondentes com a imago paterna.

Essa Carta, em síntese, deve ser vista como uma das tentativas de Freud para se fazer entender o que viria a ser futuramente a repressão ligada com as fixações pré-genitais no desenvolvimento psicossexual do sujeito: parte essencial da construção sinto[mal] do neurótico.

Referências

FREUD, S. Briefean WilhelmFließ. 1887-1904. Hg. Von J.M. Masson. Frankfurt am Main: Fischer, 1986.

[1] É psicólogo (CRP-15/1795) e filósofo. Especialista em Linguística pela UNICID/AAL. Atualmente é mestrando em Educação pela UFAL. E-mail: yvissongomes@hotmail.com

[2] FREUD, S. Briefean Wilhelm Fließ. 1887-1904. Hg. Von J.M. Masson. Frankfurt am Main: Fischer, 1986. S. 194-195.