OS IMPACTOS SUBJETIVOS DO PROGRAMA DE PROTEÇÃO ÀS TESTEMUNHAS AMEAÇADAS: Racionalidade Burocrática, Invisibilidade e Violência

Jacqueline Leãopor Jacqueline Leão*

No Brasil contemporâneo, ao longo das temáticas que vêm sendo discutidas pela sociedade civil, uma das que mais ganhou visibilidade é a questão da violência. Associada a inumeráveis fatores e guarda profunda relação com as condições históricas constitutivas da nossa formação social e política, em níveis nacional, regional e local. A segurança, embora não esteja diretamente ligada ao conceito de Estado, está aliada à sua formação e função: proteger, sancionar e punir. Através das suas instituições, a proteção – seja por intermédio da segurança física, patrimonial ou dos direitos do homem – remete ao Estado o lugar da sua legitimação como operador da Lei. Segundo Enrriquez (2005), nasce, da sua inércia na promoção de soluções para os problemas sociais a incerteza do Estado moderno como uma tentativa de construção de um tipo de organização social que promove a democracia, a liberdade e a segurança (ENRIQUEZ,2005).

 Bauman (1999) conclui que o Estado moderno fracassou,  mostrando ser ilusão a promessa da ordem e do seu compromisso em dominar e transformar a sociedade em uma associação ordeira. A insuficiência e a falta de legitimidade das instituições estatais proporciona o esgarçamento do tecido social, fazendo ruir as crenças e os valores que formam o processo civilizatório. A destruição desses referenciais impede os interditos que possibilitam o ordenamento social (FERREIRA,2007). Dessa maneira, a anomia[1] do Estado e o estado de anômico na sociedade tornam-se fontes retro-alimentadoras na produção da violência, fazendo surgir dimensões objetivas e subjetivas, individuais e sociais desse fenômeno. Na dimensão objetiva, produz o aumento da impunidade, da violência doméstica, social e institucional, da criminalidade, gerando uma cadeia cíclica que culmina com a perda incontável de vidas; na dimensão subjetiva, produz o declínio da autoridade, comprometendo o comportamento e a qualidade da relação do sujeito com a Lei, gerando a cultura da banalização da violência, o desrespeito, a irresponsabilidade social e individual, fertilizando a falta de alteridade e a intolerância. Esse conjunto de conseqüências produz prejuízos sociais de elevada grandeza, perpetuando a violência, a injustiça, o medo, a descrença, a sensação de desamparo e todos os sofrimentos físicos e psíquicos advindos da insegurança e da insustentável experiência da inversão da ordem, quando a figura de poder que deveria proteger, abandona e violenta.

A falência institucional brasileira perpassa o cotidiano da população, em todas as instâncias do tecido social e pode ser atestada pelos seguintes indicadores: caos na saúde pública; déficit da previdência pública; expansão urbana desordenada; deterioração da infra-estrutura; índices elevados de desníveis sociais; regionais e setoriais; déficit habitacional e precariedade dos serviços de saneamento; baixa qualidade de ensino público e privado; corrupção generalizada; privilégios para elite e exclusão social e econômica para os pobres; gestões burocratizadas, arcaicas e ineficientes, abertas para práticas corruptas e altamente onerosas para o contribuinte; degradação ambiental; insegurança generalizada crescimento da violência e domínio do crime organizado (SILVA,2008).

Vinculados à violência e dando visibilidade a algumas de suas modalidades, esses indicadores realçam o paradigma da dimensão da miséria, da falta de dignidade e cidadania de grande parte dos cidadãos brasileiros e terminam por gerar pressões sociais e políticas de segmentos da sociedade, a exemplo do que vem acontecendo no Brasil desde o processo de redemocratização do país, após os anos de Ditadura Militar. Em meados dos anos 70 surgem, no cenário político brasileiro, novos atores sociais que passam a reivindicar garantias, direitos e o exercício de sua cidadania (CARVALHO,2001). A partir da transição política do sistema autoritário para o sistema democrático, cresce a participação da sociedade civil organizada contribuindo para o alargamento da esfera pública e colocando na agenda política do país, além dos antigos problemas estruturais, a reivindicação da sociedade do uso pleno de sua cidadania.  Benevides assevera que, a partir de então, a expansão dos direitos políticos e das praticas democráticas abrem as possibilidades para participação dos cidadãos através de institutos diretos ou indiretos de democracia, a exemplo do referendo, do plebiscito, da iniciativa popular da Lei, dos conselhos e de outros canais, como a participação da sociedade civil organizada na produção e na co-gestão de algumas políticas públicas (BENEVIDES, 1991).

O Programa de Proteção à Testemunha é um exemplo marcante de política pública orientada para a questão da segurança, construída segundo o novo arranjo de participação entre atores coletivos da sociedade civil e o Estado. O PROVITA foi gestado no Brasil num contexto marcado pela luta de movimentos sociais contra a violência e a favor da cidadania, tendo sua origem em um projeto elaborado e implementado por uma organização não governamental – ONG -, o Gabinete de Assessoria Jurídica a Organizações Populares – GAJOP, sediada em Pernambuco. Promovida com o objetivo de suprir a lacuna da segurança pública naquele estado no que tangia à proteção das vítimas de crime, testemunhas ameaçadas e seus familiares, foi posteriormente adotada como uma política pública de Direitos Humanos, criada pela lei 9.807/99 e regulamentada pelo decreto n. 3.518/00, tendo como base o Plano Nacional de Proteção aos Direitos Humanos – PNDH.   

A despeito de reconhecermos a importância e a imprescindibilidade do referido PROVITA – a visibilidade que o programa deu ao agudo problema da testemunha ameaçada, a adoção do programa enquanto política pública como uma representação da evolução do processo democrático e da ampliação do espaço público no Brasil e o atestado que dá à importância da participação da sociedade civil organizada na garantia e ampliação dos direitos humanos (LEÃO, 2011) -, entendemos que o mesmo produz e traduz sintomas, dilemas e antagonismos que derivam de alguns paradoxos existentes na sua conformação e operacionalização.

Partimos do princípio de que a análise dessas questões precisa ir além dos dados estatísticos do programa, que o apresentam como uma política pública de Direitos Humanos 100% eficaz e eficiente. Segundo a avaliação do PROVITA, feita pelo Tribunal de Contas da União – TCU-, em 2005, o Programa de Proteção a Testemunhas adota, para comprovação e mensuração de sua eficácia e eficiência, um único índice de desempenho, qual seja: Taxa de Atendimento de Pessoas com Necessidade de Proteção. A fórmula de cálculo feita é a relação percentual entre a quantidade de admissões no programa e a quantidade de solicitações apresentadas para análise de inclusão. Esse indicador tem o objetivo de acompanhar a capacidade de atendimento de inclusão de beneficiários em face das demandas de proteção apresentadas via pedido de admissão. De acordo com o Relatório do TCU, elaborado a partir do relatório gerencial do PROVITA, o valor do indicador sempre se manteve em 100% desde a criação dessa política pública, já que “todos os pedidos de admissão que se enquadram nos critérios legais são deferidos”. O resultado apresentado no relatório do PROVITA – o valor do indicador na casa de 100% de eficácia desde sua implementação – revela a falta de variabilidade no índice, o que pressupõe a distância da realidade e sua pouca utilidade, segundo a avaliação do Tribunal de Contas da União (Brasil,TCU:2055,p.22). Para além da invalidade do índice, os dados estatísticos do programa assim como sua inscrição como política pública de Direitos Humanos, revelam a racionalidade burocrática como um atributo central do programa e a ideologia do Estado ao construir um discurso de promoção de cidadania que não coaduna com os resultados do programa.

O processo de racionalização, caráter essencial da modernidade, faz com que Estado moderno eleja a burocracia racionalizada como instrumento fundamental na busca da excelência e da eficiência a qualquer custo, gerando a primazia da técnica em detrimento de todos os elementos pessoais e emocionais. Regido pelo padrão estabelecido pela cultura racional moderna, o Estado prioriza o alcance das metas a qualquer preço e o descarte da emoção no comando das suas ações, desumanizando suas práticas. “A racionalidade elege a técnica – precisão, velocidade, discrição, unidade, subordinação rigorosa, redução do atrito que possa ser causado pela crítica às suas práticas e dos custos de material e pessoal são elevados ao seu ponto máximo através da calculabilidade de resultado” (WEBER,2002p.151). Por esse motivo, a administração burocrática é sempre uma administração que exclui o público e se oculta do seu saber e da sua crítica. O segredo é, então, utilizado como uma tecnologia, fazendo vir à público, através da publicação das estatísticas oficiais, somente aquilo que não pode prejudicar os propósitos da administração racional. Dessa maneira, a racionalização burocrática passa a ser dita pela racionalização ideológica, através de discursos  e números que possam abafar e inverter a realidade (WEBER,2004).

A desumanização da administração burocrática do programa, instrumentalizada pela técnica, faz desaparecer o sujeito. A testemunha é distanciada e reduzida a um mero número, privado de qualidades, identidades e necessidades. Acreditamos que a análise da eficácia e eficiência do programa deve estar, inexoravelmente, correlacionada ao sujeito que está por trás do testemunho, através da observação do ponto de vista da proteção de todas as suas dimensões e necessidades – física, social, cultural, emocional e  psíquica. Negligenciar qualquer dessas dimensões põe em risco esse indivíduo e a possibilidade do Programa de Proteção à Testemunha Ameaçada ser aprimorado e avançar como um instrumento democrático.

RACIONALIDADE BUROCRÁTICA, INVISIBILIDADE E VIOLÊNCIA

A longa trajetória de vitimizações a que é submetida a testemunha de um crime é iniciada antes de sua chegada ou ingresso no programa: no momento em que esta presencia o crime. Na maior parte das vezes, são crimes violentos, traduzidos em imagens chocantes. Haverá, sempre, o trauma provocado por essa visão. Segundo Chemama (1995), trauma é a consequência de um fato acompanhado de uma emoção violenta, sensibilizando-a de uma forma especial para emoções análogas posteriores. É um evento inassimilável para o sujeito, do tipo que pode parecer constituir uma condição determinante de neurose. Peixoto complementa: “Um dos objetivos do trauma é o de apagar para sempre o acontecimento, cavando um buraco na própria história, afastando das trocas psíquicas uma parte do próprio ego. Quem sofre um trauma mata uma parte de si próprio” (PEIXOTO,2008,p.33)

Quando uma testemunha chega a buscar proteção no PROVITA isso significa que os meios tradicionais de proteção falharam. A única opção que resta é o Programa de Proteção ã Testemunha Ameaçada. O que move o sujeito nessa direção é o medo. Santa (2006) reconhece que a busca de amparo no PROVITA não tem um caráter voluntário ou espontâneo, não é uma escolha. O que motiva o sujeito a pedir a proteção do programa é, de fato, o risco iminente de morte e a total impossibilidade de encontrar segurança através dos instrumentos da segurança pública.

O primeiro grande impacto causado pelo programa acontece quando a testemunha ameaçada, ao chegar ao programa, toma conhecimento de que pode não estar ‘qualificada’ para ser protegida segundo o entendimento e as regras do PROVITA. Os critérios de inclusão de testemunhas no programa, determinados pela Lei 9.807/99, são eletivos.  A testemunha ameaçada somente será protegida caso possa colaborar em processo penal relativo a crime de alto poder ofensivo, cujo processo esteja em curso e cujo testemunho seja imprescindível para prova. Dessa maneira, a testemunha passa a compreender que pode ter sua proteção negada.

O processo decisório para aceitar ou não o ingresso da testemunha no programa é burocrático e, por vezes, lento. Enquanto aguarda a decisão do Conselho Deliberativo do programa, a testemunha é imediatamente retirada do seu ambiente e trasladada para local seguro, circunstância em que há uma interface com a força policial, o que pode colocá-la em risco, já que não existe uma forma policial treinada para a realização de proteção e escolta para esses casos e, mais grave, 37% dos acusados nos processos do crime organizado em curso pertencem às forças policiais, portanto, é forçoso considerar a possibilidade de envolvimento dos policiais designados para dar proteção a essas testemunhas com os crimes investigados (BRASIL,TCU,2005). Além disso, o programa não oferece estrutura, de maneira que existam locais específicos e apropriados para a proteção da testemunha enquanto o programa decide aceitá-la ou não. Existem casos em que as testemunhas passam longos períodos em lugares insalubres enquanto os pedidos de admissão são avaliados e decididos. Esta espera pode ser longa, aumentando o sofrimento da testemunha. Em Maceió − AL uma testemunha, enquanto esperava a decisão do programa, morou por um ano nas dependências do Corpo de Bombeiros, vagando pelos corredores até não suportar mais o sofrimento e preferir expor-se ao risco de morte a viver dessa maneira totalmente indigna, abandonando o abrigo e a única possibilidade de salvar a sua vida.

Segundo um dos membros do Conselho Deliberativo, “quando não há interesse do programa no testemunho, ocorre simplesmente isso: o descarte. As testemunhas que não conseguem ser admitidas ficam à própria sorte”. Quando isso ocorre, os direitos de igualdade e de direito à vida, garantidos pela Constituição Federal[2], são suplantados pelos critérios utilitaristas do PROVITA. Esse fato revela o caráter burocrata racional na sistematização e operacionalização do programa. Segundo o membro do Conselho, o assassinato é o que acontece com a maioria das testemunhas – tanto às que não são aceitas pelo Programa de Proteção à Testemunha Ameaçada quanto àquelas que são desligadas do PROVITA por não suportarem as suas regras ou por decisão do programa.        

Nesse contexto, o Estado é o soberano que escolhe quando, onde e quem vive o estado de direito ou o estado de exceção. O estado de exceção, segundo Agamben (2007), se apresenta como forma legal daquilo que não pode ter forma legal: a suspensão dos direitos de parte da população. Nos casos de não inclusão, exclusão ou do desligamento do Programa de Proteção à Testemunha, pode haver a suspensão do direito à vida humana de categorias inteiras de cidadãos que, para o soberano, não se constituem em objeto primordial, transformando-as, assim, em homo sacer – categoria do humano cuja vida, para o soberano, e na exata proporção de seu abandono, deixa de ser politicamente relevante. Figura do Direito Romano arcaico, o homo sacer é um conceito que o filósofo Giorgio Agamben resgata e define como “aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos” (AGAMBEN,2007,p.92); é o homem matável. Ao soberano cabe o poder de vida e de morte; ‘é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (AGAMBEN,2007,p.149). A violência da qual a testemunha está tentando desesperadamente escapar é, antagonicamente, encontrada por ela, sob outras formas e signos dentro, do programa. Ser abandonado e reduzido à condição de homo sacer não é a única.

Caso seja aceita, a testemunha deve se comprometer a obedecer rigorosamente às regras impostas pelo programa, sob pena de desligamento do mesmo a qualquer momento. Reconhecidas pelo programa como “severíssimas”, incluem rigorosas formas de comportamento, tais como: 1) disfarces; 2) adoção daquilo que o Programa denomina “história de cobertura” − uma nova historia de vida construída para que ela possa justificar sua inserção em um novo espaço social, o que significa para a testemunha a negação da sua própria história; 3) controle de comunicação, ou seja, todo tipo de comunicação é controlado pelo Programa, o que inclui violação de correspondência recebida e enviada pela testemunha; 4) se necessário (segundo a apreciação do programa), mudança de nome completo; 5) controle da vida individual e social da testemunha; 6) corte imediato, afastamento e isolamento de referências e relações sócio-afetivas da testemunha; 7) limitação do direito de ir e vir, entre outras.

Aceita e ingressa, a testemunha será deslocada do local de proteção provisória na sua cidade de origem para um local desconhecido, em outro Estado. Essas operações de traslados envolvem estratégias de segurança como remoções imediatas e sem aviso de amigos ou familiares, disfarces, entre outros aspectos estressantes. A testemunha deixará para trás sua história de vida, suas relações familiares, afetivas e sociais, abandonando projetos, trabalho, sonhos. Ao fazê-lo, abrirá mão de identidades construídas ao longo de sua trajetória na vida, podendo chegar a ponto de precisar assumir outro nome e passará a viver um exílio em seu próprio país.

Esses deslocamentos geográficos, sociais e psíquicos da testemunha – mudança de cidade, de status e papel social e de situação emocional − causam o fenômeno do desenraizamento.  Para Weil (2001), esse sentimento de estar desenraizado de todas as suas referências faz com que o homem conheça uma das piores formas de escravidão: a perda da autonomia, tornando-se vulnerável a várias potências tutelares. Para a autora, O desenraizamento é “o assassinato do passado. Um ato suicida, pois não possuímos outra vida, outra seiva, senão os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós” (WEIL,2001,p.50). O desenraizamento da testemunha desagrega sua vida privada, corrói seus laços sociais e estabelece a ruptura com a própria identidade. Para Arendt, “não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros, ser supérfluo significa não pertencer ao mundo de forma alguma” (ARENDT,1989,p.244). Esse fenômeno é agravado pela certeza do risco iminente de morte e, outrossim, pelo medo dos desconhecidos com os quais passa a conviver: desconhecido o lugar para onde é deslocada sem que isso fosse uma escolha; desconhecidas as pessoas das quais passa a depender completamente a partir de então; desconhecido o seu futuro, desconhecido da sua própria identidade, cindida pelo processo de desenraizamento.

Conforme Erikson (1987), possuir identidade significa experimentar o sentimento de que é um ser humano único e preparado para assumir um papel na sociedade. A partir desse construto, a pessoa toma consciência das características individuais que lhe são próprias, de suas preferências, aversões, planos para o futuro e do poder e propósito de controlar e escolher o próprio destino. É dela que nasce o autoconceito – a imagem que uma pessoa faz de si mesma: aspectos físicos, características de personalidade, hábitos, ideário político, estado civil, particularidades extremamente pessoais que dão ao indivíduo a idéia de seu complexo e multifacetado eu.  Para Hall (2005:p.70), “as identidades culturais são pontos de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da história. Não uma essência, mas um posicionamento.” O deslocamento abrupto das fronteiras habituais que configuram a vida da testemunha ingressa no programa altera este posicionamento, esgarçando as suas suturas psíquicas estruturais, podendo levá-la a o estado de despersonalização e alto grau de sofrimento psíquico. A perda da identidade e do auto-conceito, provocadas pelo processo de desenraizamento, tornam a testemunha ingressa no programa invisível também para si mesma.

Benevides (2002) afirma que o tema da identidade é central na dinâmica do PROVITA, já que o programa lida com sujeitos que estão vivendo um momento de ruptura avassaladora das fronteiras habituais que configuram a sua vida. Esta experiência desestabilizadora, principiada pelo processo de desmanchamento do território onde o sujeito construiu sua história de vida e estabilidade psíquica, pode chegar a ser aterrorizante: “muitas vezes a sensação é a de que nos perdemos de nós próprios. O passado e o futuro nos condensam de forma supercompactada num presente sem espessura. A reação é muitas vezes de medo, medo de não poder mais encontrar seu mundo” (BENEVIDES,2002, p.218). Para a autora, nasce dos problemas relativos à identidade, o fenômeno denominado pelo programa como “barganha”.  Monteiro comenta: “é comum tentarem barganhar tudo, e quando não conseguem o que desejam, exploram sua condição de vítima como mecanismo para que a equipe técnica do Programa supra suas perdas. Também é comum barganhar seu testemunho por situações estáveis, às vezes superiores à vida anterior ao Programa” (MONTEIRO,2002,p.87). O depoimento de uma testemunha incluída no programa confirma essas palavras: “eu denunciei gente grande envolvida com narcotráfico. Meu testemunho é importante”[3]  (MONTEIRO,2002,p.88).

A barganha é entendida por Benevides (2002) como uma questão relativa ao fato de que, ingressas no programa, as testemunhas assumem uma postura vitimizada e indevidamente exigente e à dificuldade de assumirem outra identidade, que a autora denomina “testemunha cidadã” – numa alusão à cidadania que o programa assegura promover. “Ao se depararem com a situação de mudança,(…) enrijecem-se em posições despóticas. Passam a cobrar pela lesão que sofreram. Atingidas em sua identidade, desestabilizadas em suas referências, respondem com exigências em que toda a proteção é insuficiente e insatisfatória (BENEVIDES, 2002,p.219). Dessa maneira, para a autora, o fenômeno da barganha é entendido como a faceta da operação de vitimização da testemunha em relação à equipe técnica que lhe dá assistência: “tornam-se vítimas da falta. Carentes de tudo, demandam das equipes soluções impossíveis. Pedem que o outro, a equipe, dê o passo que elas não estão conseguindo dar: passar de vítima a testemunha-cidadã. Ficam capturadas na teia sempre inacabada daquele que só quer receber” (BENEVIDES,2002, p.219).

No nosso entendimento, esse é o fenômeno que nasce a partir do momento em que a testemunha passa a se dar conta do utilitarismo do programa e, então, toma consciência de que o seu testemunho é uma mercadoria, uma moeda de troca pela sua proteção; que ela, o sujeito, não é o objeto primordial da proteção do programa e que sua vida só será protegida enquanto o processo ao qual seu testemunho está relacionado estiver em curso e, ainda, que seu desligamento do programa pode ocorrer à revelia do risco de vida que corre. A barganha − engrandecer o valor do seu testemunho, sua moeda, para tentar trocá-lo por algo − no caso da testemunha, mais conforto, a possibilidade de se comunicar com um familiar, ou qualquer outra coisa que o valha – é uma práxis do mercado, de qualquer mercado, onde quem determina o valor das coisas e o lucro é sempre o dono da mercadoria.

Perpetua-se, dessa maneira, o fenômeno crônico baseado no princípio das determinações mercantis, sob o qual as sociedades capitalistas fundaram seus alicerces: a reificação, descrito por Costa (2004) como o processo pelo qual, nas sociedades industriais, o valor do que quer que seja – pessoas, relações inter-humanas, objetos, instituições – apresenta-se na consciência dos homens como valor de troca, passando a contar como mercadoria. Transformada em objeto produtor de prova testemunhal pelo Estado, a testemunha cria novas subjetividades ao se transformar em ‘moeda de troca’: a sua vida pelo seu testemunho, pelo menos enquanto não houver, para o Estado, “cessação dos motivos que ensejam a proteção” (Lei 9.807/99). Nessa relação desigual, embora o testemunho seja dela,  não é a testemunha o dono da mercadoria.

Na concepção do programa, ser “testemunha-cidadã’ é pertencer a uma categoria da qual a testemunha só passa a fazer parte quando abandona o testemunho como instrumento de barganha e o troca como um “instrumento democrático de combate à violência”, um passaporte para a “cidadania”. Nessa lógica, não há sujeito cidadão, há “testemunha cidadã” – inversão na qual a testemunha ameaçada, para se ‘tornar cidadão’, precisa percorrer o caminho descrito até aqui: do desrespeito, do abandono, da violência, do medo, do descrédito, do desespero, da reificação, do exílio, da revitimização e da imposição dessa nova identidade para tornar-se cidadão. Nesse caso, a cidadania não é construída pelo sujeito de direitos, mas concedida como título à testemunha ameaçada, desde que, sem exigências, esta possa ser utilizada como instrumento produtor de provas e esteja disposta a trocar o seu testemunho pela proteção da sua vida e pelo título de cidadão, além disso, nessa concepção pressupõe-se que a testemunha tenha consciência do que significa democracia e cidadania.

Segundo Marx, “não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência” (MARX,2004,p.20). O homem tem sua consciência construída a partir da sua vida real, de suas relações efetivas no mundo em que transita, no qual vivencia suas experiências. Esse sujeito que, na busca desesperada para permanecer vivo ingressa no PROVITA, não se reconhece como cidadão porque não viveu essa experiência. O testemunho, no caso das testemunhas ingressas no programa, não é fruto da consciência de um sujeito que o reconhece como instrumento democrático que promove a construção da cidadania, porque esses sujeitos não têm a experiência da cidadania em sua vida real e, portanto, não podem reconhecer o que não conhecem, nem ter consciência do que não viveram. Seu sentimento e entendimento nascem da sua realidade concreta, da sua experiência no mundo: do medo, do desrespeito, da insegurança, da descrença, da impunidade. Segundo Monteiro, há uma fala recorrente entre as testemunhas ingressas no programa: “o processo não vai dar em nada” (MONTEIRO,2002, p.89).   

A testemunha admitida no PROVITA passa a ser um ser institucionalizado. Para Almeida, as testemunhas ingressas no programa são seres singulares, que, no século XXI e no terceiro milênio, repõem a luta por direitos em um outro lugar, pugnam pelo direito a um dos mais básicos dos direitos civis – o direito à vida, e, ao fazê-lo, renunciam a dois direitos civis também básicos: o direito à liberdade de expressão e o de ir e vir (ALMEIDA,2001).

Ao contrário de todos os atores sociais e das minorias que, através da visibilidade das violências de que são vítimas, buscam a garantia dos seus direitos tornando visíveis as violências de que são vítimas, é a invisibilidade que dá, à testemunha em situação de risco, a garantia do direito de permanecer vivo. Este paradoxo, ao tempo que a protege do seu algoz, torna-a invisível enquanto sujeito e a isola socialmente, fazendo-a vítima de outros e tipos de violência. A invisibilidade da testemunha de crime inserida no Programa de Proteção à Testemunha Ameaçada protege-a e a violenta em muitos sentidos: (1) no sentido da subjetividade, quando a faz negar-se enquanto sujeito e a circunscreve a um papel − o de objeto: a testemunha de um crime, um sujeito sem rosto, instrumentalizada e reificada pela racionalidade burocrática do programa; (2) no sentido social, quando a isola de todos os seus laços e espaços sociais; (4) no sentido cultural, quando a obriga a abandonar tudo aquilo que a constitui como sujeito: suas raízes, seu lugar, suas referências no mundo; (3) no sentido político, quando sonega desse sujeito a possibilidade de se organizar enquanto minoria e reivindicar direitos; quando não a reconhece como sujeito de direitos e controla e mutila a sua voz (LEÃO,2011). A invisibilidade sonega o poder, pois, como diz Wittgenstein, “o que está oculto não nos interessa” (apud CALVINO,2000, p.90).

A testemunha não fala de si – ela não pode, não tem um canal de voz para tanto. Seu silêncio é imposto; seu discurso é seletivo; sua história é inventada. A testemunha admitida no programa não tem voz, tem testemunho a dar. Não existe canal de expressão, de questionamento ou de denúncias para a testemunha incluída, além daquele que passa pela equipe técnica e pelo controle e censura de sua fala e correspondência. Segundo um dos  membros do Conselho Deliberativo do programa, “a constatação é essa: a testemunha não tem outros caminhos que não sejam os caminhos do programa” . O drama da testemunha não se resume ao ato de violência que impede diretamente a sua fala; ele refere-se também à condição de ser dita pelo outro: pelo programa, pela equipe técnica (LEÃO,2011)

O sigilo, instrumento de proteção para a testemunha é empregado como numa técnica de  blindagem do programa à visibilidade dos problemas internos e das distorções que produz. Preponderante para a proteção da testemunha é, contudo, tomado como um argumento para criar uma couraça de proteção que impõem o impedimento à visibilidade e avaliação externas dos procedimentos, das condições, denúncias feitas por testemunhas não incluídas, excluídas ou que abandonaram o PROVITA. Mesmo o órgão mais elevado na hierarquia estatal, responsável pela avaliação dos programas governamentais, o Tribunal de Contas da União, não teve acesso irrestrito às testemunhas ingressas no programa. Segundo o Acórdão da avaliação do PROVITA, os dados lhe foram enviados em um relatório e as testemunhas entrevistadas foram escolhidas pelo programa (BRASIL,TCU, 2005). A denúncia de M.N.[4], que testemunhou com o marido um esquema de fraudes nas eleições no Paraná, revela o quanto é necessário dar voz à testemunha e não somente utilizar a sua voz. Mais do que isso, atesta que silenciar a respeito das distorções do programa é conciliar com a impunidade e com o desrespeito aos Direitos Humanos:

                  Vivo sem liberdade desde que eu e meu marido ingressamos no Programa de Proteção. Inicialmente fomos levados, junto com nossos filhos, para uma delegacia de Polícia Federal, em Foz do Iguaçu. Ficamos em um auditório onde não havia sequer um banheiro. Lá acabei presenciando corrupção entre policiais e fui novamente ameaçada. Fomos transferidos para o Rio, mas nos colocaram numa casa no Morro do Alemão, uma das favelas mais violentas da cidade. Apesar de não receber nada, era obrigada a assinar recibos em branco. Só nos davam comida, mesmo assim, uma só vez por semana. Acabei expulsa do Programa sob alegação de que não me adaptava às regras. Fomos então para o Programa do Depoente Especial, em Brasília. O inferno continuou. Sofremos todo tipo de agressão por parte de quem, em tese, deveria nos proteger. Minha filha, de 19 anos, chegou a sofrer uma tentativa de estupro. Em setembro do ano passado deixei o Programa. 

Dentro dos muros impostos pelo programa existem graves desvios e distorções. Sob o manto da invisibilidade a testemunha vive o isolamento social; exilada, ela está no mundo, mas não no seu mundo; desenraizada, e como outsider, a testemunha incluída no programa vivencia a sujeição  e manipulação; o desterro físico e espiritual. A perda da sua autonomia é completa: moradia, alimentação, dinheiro para pequenas despesas, comunicação com familiares, acesso à justiça, continuar protegido ou não, o controle de sua vida em todos os aspectos passa pela tutela da equipe multidisciplinar[5], cujo poder é soberano. À equipe multidisciplinar cabe descrever a conduta da testemunha em relatórios[6], através dos quais seu destino é decidido. Na avaliação de um dos conselheiros do programa, “é o que acaba sendo o programa […] Os relatos são muito ruins, assim como o perfil das equipes. As equipes precisam ser avaliadas. Porque a gente sabe que essa relação superioridade inferioridade é algo terrível. O sujeito fica numa relação de superioridade em relação ao outro e acaba abusando desse outro, tendo uma relação contraditória”. Na relação entre testemunha e equipe técnica existem situações tirânicas, incentivadas e protegidas pela falta de visibilidade do programa e da testemunha (LEÃO,2011).

É enorme a complexidade do contexto que envolve a política pública de proteção à testemunha. Em que pese a importância do Programa de Proteção a Testemunha Ameaçada, o PROVITA tem graves distorções a serem resolvidas. Os aspectos operacionais do programa que culminam por vitimizar as testemunhas, incontestavelmente, não foram previstos e, menos ainda, projetados quando da sua elaboração e implementação como política pública. No nosso entender, a desvirtuação do objetivo desse programa – nascido da luta de atores sociais da sociedade civil organizada para primordialmente proteger a vida de vítimas e testemunhas de crime em situação de risco de morte – e seu redirecionamento para atender às questões relativas à insuficiência do Estado na garantia da segurança pública e no combate à impunidade, geram uma seqüência de paradoxos, alguns aqui apontados. Essas contradições limitam a eficácia e eficiência do programa na efetivação de seus propósitos e estão diretamente relacionados com seus efeitos indesejáveis. Acreditamos que os paradoxos que o programa revela estão relacionados com eixos da sua conformação, que dizem respeito à (1) natureza do programa como uma política pública de Direitos Humanos; (2) quanto ao modelo de gestão; (3) quanto à sua sistematização e estruturação; (4) quanto à visibilidade do programa e da testemunha.

As questões que permeiam e ensejam o Programa de Proteção à Testemunha – proteção de testemunhas ameaçadas, o combate ao crime organizado e à impunidade – são, sem exceção,  relativas à segurança pública. Natureza essencial do programa, a segurança pública é um dever constitucional do Estado. Segundo o relatório de avaliação do programa, elaborado pelo Tribunal de Contas da União, as primeiras iniciativas visando à proteção de testemunhas ameaçadas no Brasil impunham ao governo federal a sua centralização. Esse projeto não prosperou em face do seu alto custo financeiro e material (BRASIL,TCU,2005). A definição do PROVITA como uma política pública de Direitos Humanos, ao tempo em que justifica a transferência do dever do Estado de proteger e assegurar a vida das testemunhas ameaçadas a para sociedade civil organizada, o desobriga de encargos, resultando na economia de recursos. Ademais, a apresentação do PROVITA como uma política pública de Direitos Humanos 100% eficiente, alimenta o discurso ideológico do Estado como provedor de cidadania.

O desvio na essência de segurança pública do programa para o universo dos Direitos Humanos gera uma cadeia de paradoxos e distorções que culminam por causar, para as testemunhas, os danos aqui explanados. O caráter excludente do programa e o descarte das testemunhas que não servem aos seus interesses são características irreconciliáveis com os preceitos de universalidade e igualdade dos Direitos Humanos e com as ações afirmativas que embasam as políticas públicas criadas para proteção de grupos vulneráveis. Da progênie dessa questão originam: (1) a má definição do programa e, daí, o fato de ser mal entendido pela população a que está destinado, gerando uma demanda da qual não pode dar conta. A distorção da natureza do programa faz surgir (2) o desterro das testemunhas que, tomando o PROVITA como uma política pública de Direitos Humanos, se deparam com o finalismo do programa e, não estando qualificadas para a proteção segundo as suas regras são abandonadas à própria sorte; (3) o sintoma da barganha e a sua incompreensão pelas equipes do programa – a barganha, fator constitutivo de qualquer negociação, no contexto de uma política pública de segurança clara e bem definida que oferece proteção em troca do testemunho, ao contrário de ser vista como uma agressão, como um comportamento despótico, é naturalmente encarada como um instrumento de equilíbrio entre os interesses das duas  partes –  programa e   testemunha, assim como ocorre em todos os programas de proteção em outros países; (4) a dicotomia entre seus protagonistas: de um lado o Estado que impõe o caráter finalístico e utilitarista do programa e, de outro, as ONGS escolhidas para executar o programa e seus interesses primordiais de reivindicar e fomentar os Direitos Humanos, seguindo seus preceitos de universalidade e igualdade. 

 O modelo participativo de gestão do programa inverte o papel de seus atores: a sociedade civil organizada executa a política pública e o Estado determina e fiscaliza as ações da sociedade civil organizada. Quando assume a execução do programa, a sociedade civil; (1) o faz sob o ônus de não ter autonomia e poder quanto às decisões, orçamento e estrutura física, jurídica e social necessárias para realizar essa dificílima e dispendiosa tarefa. A falta de estrutura do programa torna suas regras inexeqüíveis para qualquer ser humano. O resultado disso, segundo um dos conselheiros do programa, é o (1a) amadorismo com que o programa é executado e o sofrimento impingido às testemunhas, (1b) falta de Lei específica que permita a todas as testemunhas a mudança de identidade – o que possibilitaria à testemunha a utilização a rede de saúde e educação do Estado e facilitaria sua inclusão no mercado de trabalho, condição mínima para reinserção social da testemunha enquanto está participando e após seu desligamento do programa. A realidade hoje é que, a impossibilidade da grande maioria das testemunhas de mudar a identidade as impossibilita, de utilizar os serviços da rede pública e de serem inseridas no mercado de trabalho, em função do risco de, ao apresentarem seus documentos, assinar e preencher os formulários necessários para tal, serem localizadas por seus algozes. Ao executar o programa sob o protocolo determinado pelo Estado, a sociedade civil (2) se obriga a seguir a lógica da racionalidade burocrática que estabelece práticas assépticas e a desumanização do programa; (3) é deslocada do seu papel de dar visibilidade aos grupos vulneráveis, às suas necessidades e aos seus direitos; (4) passa a concorrer para a invisibilidade das testemunhas e das suas vitimizações; (5) emudece enquanto canal de voz para as reivindicações e denúncias das testemunha reificadas e vitimizadas pelo programa; (6) enfraquece o seu poder.

O modelo de participação vem sendo realizado, em muitos casos, sob fortes tensões e contradições e, os movimentos sociais e as ONGs sabem que, ao estabelecerem parcerias com o Estado estão fazendo apostas de risco, cujos resultados são ambíguos. Problemas relacionados com prestações de contas, falta de adequação da burocracia estatal para atender os convênios com as ONGs, falta de capacitação gerencial e administrativa por parte das organizações da sociedade organizada, o grave problema de transparência do Estado para tornar acessíveis à sociedade as informações, os procedimentos e as decisões do governo, apontados por Carreteiro (2001) como alguns problemas comuns a esse modelo de participação, a do que acontece no PROVITA. Cooptada pela idéia de que o Estado está falido e que cabe à sociedade civil substituí-lo, não é raro que as organizações que fazem parte desse modelo de gestão em parceria com o Estado, ao inverter o seu papel, sejam acusadas de incorporar o seu discurso ideológico e de abandonar sua postura reivindicadora.

O levantamento dessas questões sociopolíticas nos dá a dimensão da complexidade da arena em que acontecem os embates sociais, políticos e econômicos do Programa de Proteção à Testemunha Ameaçada, as lutas que são travadas por seus atores sociais surgem da sua concepção como uma política pública de Direitos Humanos. A falta de indicadores que avaliem suas práticas e a e a blindagem do programa à avaliação externa contribuem para que o PROVITA permaneça como uma política pública cercada de sigilos e encoberta por nuvens de dúvidas e denúncias nunca esclarecidas.

Embora existam sérios problemas e dificuldades, o PROVITA é uma ferramenta importante, construída com o esforço de muitos que dedicam suas vidas à questão dos Direitos Humanos e que acreditam ser possível proteger testemunhas ameaçadas no Brasil. As questões aqui levantadas apontam para um longo caminho ainda a percorrer e a necessidade da interlocução entre todos os saberes e atores que estejam voltados para a sua construção e aprimoramento.

*Jacqueline Leão é Psicóloga Clínica e Jurídica. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas. (Texto para publicação da Revista do NEVIAL)


[1] Durkheim entende por anomia o estado de desregramento que faz com que os sujeitos pautem suas ações no seu próprio arbítrio e não nas normas e valores coletivos. A falta de um obstáculo ‘intransponível’ que limite o desejo e as paixões humanas condenam o ser humano ao descontentamento perpétuo e a um  mal-estar que o ‘liga à vida por um fio muito fraco que está sempre em risco de partir” (DURKHEIM, 2005,P.268).

[2] A Constituição Federal, no seu art. 5º, disciplina que:Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. No art. 6º, a Constituição disciplina que: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (Brasil:Constituição Federal:1988).

[3] Os depoimentos de testemunhas incluídas no Programa de Proteção tiveram como fonte a monografia de Mestrado sobre o PROVITA, elaborada por Valdênia Brito Monteiro, integrante da equipe técnica do Programa, cuja referência bibliográfica se encontra nesse trabalho.

[4] Entrevista de M.N., concedida à revista Veja e publicada na edição de 25 de fevereiro de 2008.

[5] A equipe multidisciplinar é formada por um assistente social, um psicólogo e um advogado.

[6] Os relatórios de acompanhamento são elaborados trimestralmente pelas equipes técnicas e contêm informações relativas aos atendimentos realizados, ao andamento jurídico dos processos, à situação psicossocial da testemunha, entre outras relacionadas ao estado da rede de proteção. Os relatórios são direcionados para o CGPT e para o Conselho Deliberativo (Brasil, TCU:2005).

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